A volta mais rápida?

Ayrton Senna pra sempre

Em 28 de julho de 1935, um rijo italiano de 43 anos, Tazio Nuvolari, estava participando do Grande Prêmio da Alemanha em torno da assustadora montanha-russa que era o antigo autódromo de Nurburgring – com 22 km de extensão. Seu pit stop não foi bem, e ele perdeu 2 minutos e 14 segundos.

Atacou Nurburgring com uma fúria controlada tão poderosa que, em uma volta, tirou 26,1 segundos de diferença do líder.

Em 14 de julho de 1936, um alemão de boa aparência, com 27 anos, Bernd Rosemeyer, pilotou seu Auto Union em Nurburgring, no Grande Prêmio Eifel. Tinha dez voltas de duração e, na sétima volta, começou uma forte neblina. Rosemeyer estava duelando com Nuvolari, mas parece que tinha uma inexplicável habilidade de ver através da neblina.

 

volta 7       Rosemeyer                    Nuvolari                   Ganho

11m 44,8s                      11m 44,8s

volta 8       Rosemeyer                    Nuvolari

11m 32,6s                      12m 14,9s                    42,3s

volta 9        Rosemeyer                   Nuvolari

11m 40,0s                     12m 28,8s                    48,8s

Um ano depois, novamente em Nurburgring, Rosemeyer completou o circuito na prova classificatória do Grande Prêmio  da Alemanha em 9 minutos e 46,2 segundos, e, durante a prova, deu uma volta em 9 minutos e 53,4 segundos, um recorde que permaneceu até 1956.

O homem que quebrou esse recorde, Juan Manuel Fangio, teve, em 1957, um problema semelhante ao de Nuvolari, também em Nurburgring. Para recuperar o tempo perdido, atacou com a mesma fúria controlada e conseguiu completar a volta em 9 minutos e 17,4 segundos com seu Maserati.

Em 1962, Jim Clark levou seu Lotus 23 para estrear em Nurburgring, em uma corrida de 1.000 km para carros esportivos, contra competidores que pilotavam Ferraris e Porsches potentes. A pista estava molhada e escorregadia. Ele completou a primeira volta tão a frente que os outros carros não podiam ser vistos, e o público pensou que havia acontecido uma tremenda batida, a qual fechara uma parte da pista. Aquilo não era, claro, um grande prêmio de F1 e, por isso, não é tão relevante para a nossa história, a não ser pelo fato de que, como Senna depois dele, Clark conseguiu velocidade imediata e surpreendente com pneus frios.

Em 10 de setembro de 1967, Clark teve um pneu furado no Grande Prêmio da Itália, em Monza, que antes de as chicanes serem construídas – era um circuito difícil de se ganhar tempo. Os carros causavam turbulência e, muitas vezes, os líderes mantinham-se apenas frações de segundo a frente. Quando parou nos boxes, Clark voltou no final de uma volta completa, mas pilotou seu Lotus com destreza e, em uma volta, tirou 4,2 segundos de diferença do líder. ( Ele recuperou a volta, mas acabou sem combustível. )

Em 4 de agosto de 1968, Jack Stewart, outro escocês, pilotou em Nurburgring debaixo de uma tempestade – neblina, chuva forte, cortina d´água – e venceu com seu Matra-Ford com 4,03 minutos de vantagem. Sua volta mais rápida foi feita em 9 minutos e 36 segundos, cerca de 15 segundos mais veloz do que qualquer outra.

Fazer qualquer tipo de comparação, especialmente em um esporte que muda tanto como o automobilismo, é impossível e, de qualquer forma, muitos pilotos deram muitas voltas, o que dificulta um julgamento final sobre qual deve ser considerada a melhor volta de todos os tempos. Os campeonatos mundiais de F1 começaram em 1950. Antes disso, havia apenas corridas individuais. Grandes e pequenas equipes participavam ou não, conforme lhes interessava, e pilotos amadores misturavam-se aos profissionais. Isso não evita que uma volta excepcional seja sempre uma volta excepcional: daí considerarmos aquelas feitas em 1935 e 1936. Senna exige esse contexto maior.

Rosemeyer, Nuvolari, Fangio, Clark e Stewart mostraram o que pilotos com um dom sublime podem fazer, e não é coincidência que grande parte disso tenha acontecido em Nurburgring, uma tela enorme para um artista pintar sua obra-prima. Aqui também há um delimitador: Senna se equiparou a Fangio e pode ter assumido, como última ambição, igualar ou até mesmo ultrapassar os cinco campeonatos mundiais conquistados pelo argentino. Fangio correu, certa vez, com Nuvolari, que também competiu com Rosemeyer.

Como o automobilismo de alto nível é um universo pequeno, você pode traçar muitos delimitadores, mas acontece que, em Domington Park, em 11 de abril de 1993, Ayrton Senna faria uma volta que, em essência deve ser colocada ao lado dos feitos que esses outros pilotos realizaram.

Também há um contexto particular no qual essa volta se enquadra: como vimos no final de 1992, a Honda retirou-se da F1, deixando a McLaren com um motor Ford para competir com Prost no poderoso Williams-Renault. Senna não tinha chances e, embora tivesse um acordo, corrida a corrida, para dar a Ron Dennis tempo para levantar dinheiro suficiente a fim de mantê-lo na temporada, era uma situação desconfortável para ambos os lados. Mesmo no caro mundo da F1, movido por gastos enormes, Senna queria ganhar seu dinheiro e provar a McLaren que ele valia o investimento.

A temporada começou na África do Sul e, por um ato de pura força de vontade, Senna colocou o McLaren na primeira fila do grid de largada – com Prost na pole, é claro. Ayrton não conseguiu deter o francês durante a corrida e terminou 1 minuto e 19,8 segundos atrás. Em termos de F1, isso é mais do que muito tempo; trata-se de uma eternidade.

No Brasil, o problema de Senna com relação aos carros Williams tornou-se apenas mais óbvio. Prost pegou a pole com 1:15,866 á frente de seu companheiro de equipe, Damon Hill, com 1:16,859 – e Senna em seguida, com 1:17,687. Isto é, quase 2 segundos atrás, e, se Alain continuasse assim, nas setenta e uma voltas da corrida, ele venceria Ayrton por quase 2,5 minutos.

Prost liderou desde a largada, com Senna o perseguindo, e Hill perseguindo Senna. Isso também enfatizou o problema de Ayrton, porque Hill, certamente um piloto experiente, participava apenas de sua terceira corrida na F1 e, na décima primeira volta, ele o ultrapassou. Hill afirmou posteriormente que tive a forte impressão de que ele estava me avaliando, vendo do que eu era capaz. Sem dúvidas Senna, olhando para a frente durante toda a temporada, estava pensando: se Hill tiver alguma fraqueza, irei percebê-la e saberei como explorá-la. Será um Williams a menos para me preocupar.

Na vigésima quarta volta, Senna parou no box e recebeu uma penalidade, supostamente por ultrapassar com a bandeira amarela, e aquilo deu o quarto lugar ao jovem Michael Schumacher da Benneton. Três voltas depois, Senna parou no box novamente para colocar pneus de chuva, Um dilúvio caía sobre o circuito, e os carros rodavam por toda a pista, com se, de repente, estivessem em um carrossel maluco. Prost aquaplanou e parou sobre um carro que já havia batido, e os pilotos restantes seguiam o safety-car: Hill, Senna e Schumacher na frente da fila.

Quando o safety car deixou a pista, Hill tomou a liderança, mas Senna tinha parado no box uma volta antes (na quadragésima) que Hill para colocar pneus de tempo seco. Quando Hill saiu do box, Senna tinha ganhado segundos preciosos naquela volta, perseguindo-o – com os pneus ainda levantando água nas pista – até cortá-lo pela direita e ultrapassá-lo, numa manobra incisiva executada com firmeza e elegância. Hill colou nele e os dois disputaram as voltas mais rápidas antes de Senna majestosamente abrir distância. Hill concentrou-se prudentemente em salvaguardar o segundo lugar.

Quando Senna cruzou a linha de chegada, diminuiu e parou. Alguns torcedores, inebriados pelo momento , foram até a pista e dançaram em delírio em torno do McLaren, ao mesmo tempo em que a enorme multidão atrás acenava, aplaudia e gritava. Outros torcedores foram até a área próxima a pista levando uma gigantesca bandeira do Brasil aberta, como uma copa de árvore sobre eles.

Senna parecia exausto depois da corrida, quase esgotado. Hoje, eu não tinha o carro rápido o bastante para acompanhar os Williams, mas meu carro correu sem problemas o tempo todo. Por isso, foi um grande resultado e, encolhendo os ombros, ver a multidão desse jeito é algo que você tem de vivenciar.

Desafiando a lógica, desafiando a tecnologia, e quase desafiando a realidade, Senna, agora, liderava o campeonato mundial com dezesseis pontos- Prost, dez, e Hill, seis..

Os pilotos foram, então, a Donington, o circuito onde, coincidentemente, sediara grandes prêmios em 1937 ( Rosemeyer venceu ) e 1938 ( Nuvolari venceu ). Quando era mais jovem, Tom Wheatcroft assistiu a corrida de 1938 e, depois da segunda Guerra Mundial, comprou o circuito. Ele ansiava por um grande prêmio e, na primavera de 1993, conseguira – e não se importava que se chamasse Grande Prêmio da Europa, um oportuno vale-tudo que permitia que uma corrida extra incluída no calendário, sempre que necessário. Ao participar de uma corrida na Inglaterra durante a primavera, corre-se o risco de enfrentar mau tempo. Na primeira prova classificatória, estava chovendo e fazendo frio, o que proporcionou a Senna uma vantagem que ele explorou, deixando Hill em segundo lugar e Prost em terceiro. Na segunda prova da classificação, estava seco, quase quente, o que deu a pole a Alain sobre Hill, com Schumacher e Senna na segunda fila.

No dia da corrida, choveu, e os carros largaram com pneus de chuva. Senna estava para se juntar a Rosemeyer, Nuvolari, Fangio, Clark e Stewart.

Ele levaria apenas 1 minuto e 35,843 segundos. Na largada, Prost acelerou e abriu distância, com Hill perto dele a direita, Schumacher no meio da pista, Karl Wendlinger ( Sauber ) se aproximando de Schumacher, forçando-o a abrir, e, por sua vez, Schumacher forçando Senna, que este tirou duas rodas da pista.

Quinto;

Senna colocou o McLaren de volta a pista. Foram para o declive que termina em uma curva a direita, depois a esquerda e, no final, uma curva fechada a direita. Senna foi por dentro de Schumacher e o ultrapassou.

Quarto;

Wendlinger;  vi ( Senna ) no espelho retrovisor e percebi como se ele estava pilotando, Conhecia a sua reputação na chuva e sabia exatamente o que iria fazer. Resolvi que era melhor abrir algum espaço. Eu não queria sair da corrida: Senna ultrapassou por fora com uma manobra surpreendentemente audaciosa e equilibrada.

Ele rapidamente alcançou Prost, que não gostava de pilotar com chuva e colocava a própria segurança acima da vitória. Eles chegaram a uma curva em ferradura e, novamente, Senna foi por dentro. Os dois carros derraparam, mas Senna se recuperou instantaneamente.

Primeiro;

Seria essa a melhor volta de todos os tempos?

Aquele era o homem no auge de seus poderes sobrenaturais, um mestre criando uma obra-prima, a destilação e o aproveitamento da experiência de toda uma vida. Foi uma coisa tão improvável e absoluta que, quando ele cruzou a linha completando a volta, Jo Ramirez pensou: ele não pode estar na frente. Como pode ser? Ele correu até a mureta do box, pois achou que os Williams estavam correndo com pneus de tempo seco – só podia ser essa explicação para Senna ser tão rápido. Olhei e, não, eles estavam usando pneus de chuva, assim como nós. Nunca me esquecerei daquela volta. Ele os venceu psicologicamente e os desmoralizou. Venceu a corrida naquela primeira volta.

E Senna era assim, vencia na raça e no talento e no psicológico!

 

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