Ele vivia no mundo interior – tinha domicílios em Mônaco e em Portugal -, mas só se sentia em casa no Brasil. Só lá é que me sinto em casa, lá é que tenho a minha família, os meus amigos. Seja na sua casa de praia em Angra dos Reis, na Costa Verde, seja na sua fazenda Dois Lagos, em Tatuí, estado de São Paulo, a 160km da capital, com lago e pista de kart, ou no seu apartamento no bairro nobre dos Jardins, seu mundo ficava no Brasil.
Quando estou em Angra, eu pego o barco e em dez minutos estou numa ilha, numa pequena enseada, sozinho com os passarinhos. É uma coisa de sonho… nesses momentos ele adorava estar só – mas nem sempre. A solidão é um preço que pago, dizia ele, referindo-se a solidão paradoxal entre milhões de fãs, entre estranhos, que queriam estar perto dele, entre muitos supostos amigos sobre os quais nunca tinha segurança: Eles realmente são amigos meus ou da estrela? Por essa razão, gostava de ficar no círculo mais restrito de pessoas, composto de sua família e uns poucos amigos próximos, de muitos anos, nos quais confiava.
A família: o pai Milton, que ele havia transformado em empresário, fornecedor da indústria automobilística e proprietário de terras, já próspero, mas que, apesar disso, se mantinha tímido e contido; a mãe Neyde, a grande dama; a irmã casada, Viviane, e seus três filhos, Bianca, Paulo e Bruno; o irmão Leonardo; o primo Fábio Machado, com os três filhos – e, no último ano, a namorada Adriane também passou a fazer parte desse círculo restrito. Com todo mundo junto, a brincadeira rola……
Ele sempre quis ter família e filhos; adorava crianças. As crianças são naturais, honestas e não corrompidas. Mesmo já adulto, eu muitas vezes quis recuperar a despreocupação infantil…. e as crianças são futuro. Se a gente quiser modificar alguma coisa, é pelas crianças que se deve começar, através de sua educação.
Ele não resistia as crianças. No maior estrese, antes do início de um treino ou num domingo de corrida, antes da largada, ele atendia a qualquer criança que quisesse um autógrafo ou uma foto. Certa vez, em um dia de testes, houve um problema de motor que exigia três horas para ser resolvido; ele pegou o seu automóvel e desapareceu…. Soube-se mais tarde que fora ao hospital visitar um garoto que sofrera um acidente grave de motoneta e que queria conhecê-lo, pelo que ouvira falar. Senna nunca contou isso com vantagem.
Um funcionário de pista e seu filho Mike, que Senna conheceu nos seus primeiros anos na Inglaterra, acompanharam durante anos o Grande Prêmio inglês. Em 1990, o pai Alan, veio sozinho. Senna perguntou pelo filho e soube que houvera na família o famoso conflito de gerações: Quando o filho, sozinho, veio visitar Senna, este conversou com o rapaz de dezessete anos, fazendo-lhe refletir sobre a posição do seu pai e pedindo-lhe que o entendesse, que talvez existisse uma solução. E que era importante aprender com a experiência dos mais velhos. Mike ficou muito impressionado. recorda Alan, e voltou a falar conosco. A harmonia familiar era muito importante, uma parte indispensável da sua vida, que estava ligada a um grande respeito pelos mais velhos. No Brasil, esse respeito pelos mais velhos é parte essencial da educação, principalmente nas famílias, e Senna tinha esse princípio tão arraigado que arranjava grandes problemas quando ele era transgredido, veja o caso Eddie Irvine….
Ele se lembrava com prazer da sua infância, de determinados episódios. No primeiro ano em que fui a escola, meu pai me prometeu uma bicicleta se eu tirasse boas notas. Nunca fui um bom aluno….. mas consegui. Então fomos a uma loja de bicicletas e pude escolher a minha. Eu queria uma amarela; ainda me lembro bem que meu pai negociou o preço com o vendedor durante uma boa meia hora, ele riu: Foi uma operação digna da compra de um helicóptero. E eu adorava essa bicicleta, que durou muito tempo, até que ficou realmente muito pequena para mim. Mas eu queria outra.
O que a sua família lhe dava, marcou-o mesmo quando ele já era uma estrela mundial. Tive a sorte de ter nascido num ambiente saudável, tive uma juventude muito feliz, mas também absorvi muitos valores que marcaram a minha vida, e que considero importantes.
Meus pais me deram muita liberdade para que eu criasse minhas próprias experiências, mas também me deram os limites necessários.
Tenho muito orgulho da educação que recebi. E tento me comportar de acordo com ela. Os seus pais lhe ensinaram sempre, por exemplo, que não deixa ninguém falando sozinho, e sendo assim, quando alguém fala comigo, procuro sempre dar pelo menos uma resposta curta e educada….. No estresse de um Grande Prêmio, ele não chegava a manter a regra – mas era de se ver o embaraço.
Era simplesmente o estilo, a classe, que sempre apareciam, em todos os lugares. Que outro piloto de Fórmula 1 teria a idéia de, ao sair de um táxi, apressar-se para abrir a porta para uma mulher? E se precisasse percorrer mais um trecho….. para Senna era absolutamente normal.
Quase tão importantes quanto a família eram os poucos amigos íntimos. Mas houve problemas aqui e ali quando a fama começou. A amizade com o amigo de infância Júnior – em quem confiava e que no início o acompanhava nas corridas se rompeu sob pressão externa, depois que o rival Nelson Piquet fez publicar uma série de observações idiotas, do gênero, Senna não gosta de melhor. Passaram-se anos até que Senna e Júnior voltassem a se encontrar regularmente, e assim mesmo com medidas de segurança; quando a gente saía de barco, levava sempre duas garotas, para tirar fotos e evitar fofocas. A vida privada era sagrada, e o grande romance que teve com a estrela Xuxa foi interrompido, entre outras razões, porque ela contou, oficialmente, alguma coisa sobre o relacionamento entre os dois, Foi um horror. Outros pilotos gostavam de falar sobre cada noite, em cada cidade diferente, com uma garota diferente. Para Senna era ruim quando qualquer história dessas se espalhava.
Mas não dava para esconder tudo. Agora, após a morte, reapareceu o caso do filho de Senna com a modelo Marcella Prado. Já em maio de 1993, quando, pela primeira vez, o assunto ocupou as manchetes da imprensa sensacionalista do Brasil, ele teve uma reação irônica de primeira classe: Não pode ser! Mas se for menino, pode ser chamar Alain.
Para o seu amigo Gerd Kramer, que muitas vezes vinha assunto da criança dele. Senna disse com toda sinceridade: Se houvesse a menor probabilidade de ser meu filho, eu faria os testes imediatamente. E se fosse meu filho, é claro que o assumiria. Mas não é o caso. E Kramer disse: Não foi somente a Marcella que veio com essa história para a imprensa, mas também a mãe dela, que está apostando na popularidade da filha.
Kramer, que o conhecia desde 1984, ia sempre a Angra. Em 1993, comemoramos juntos o seu aniversário a bordo, quase sozinhos, porque não havia ninguém da família ali. Quem era amigo dele, era amigo de verdade, e ele fazia tudo pelos amigos. No inverno de 1993, por exemplo, ele veio para a despedida do chefe Jochen Holy, que ia para Stuttgart. Ele o apanhava sempre de helicóptero no Rio.
Quem pilotava o helicóptero era sempre Ayrton, apesar de não ter brevê, que só providenciou no inverno de 1993/1994, depois de ter tentando não sei quantas vezes, mas nunca havia tempo. No Brasil, não se pedia nada a quem se chamasse Ayrton Senna – e, além disso, ele voava perfeitamente. Em poucas horas seu professor de vôo convenceu-se de que ele não tinha muito o que aprender, e que possuía uma intuição inexplicável para tudo. Gerd Kramer não se sentia muito bem em helicóptero, tinha algum tipo de insegurança. Mas quando o piloto era Ayrton, voando entre as ilhas de Angra, a tranquilidade era total.
Com ele era possível sentir-se totalmente seguro. Em Angra também havia um helicóptero em frente a casa de praia. Uma casa paradisíaca, toda em madeira e vidro, com 800 metros quadrados de sala com piscina integrada, embarcadouros para barco a motor, jet ski etc… uma casa de jogos com tênis de mesa, bilhar e um telão acoplado a uma instalação estéreo dimensionada, para um amante da música como Senna.
Um mundo de sonho encravado num país pobre e cheio de problemas? Mas Senna não vivia numa torre de cristal; ao contrário, registrava com precisão a realidade: O problema principal do Brasil é a grande diferença entre a população de baixa e alta renda. Para muitos, não há perspectiva nem futuro. Na minha opinião, não dá para continuar assim. Os ricos não podem continuar vivendo como se fossem uma ilha no meio de um mar da pobreza. Nós todos respiramos o mesmo ar…. As pessoas precisam, no mínimo, de uma chance, uma base: alimentação, assistência médica, educação, formação profissional, do contrário, não é de admirar que os problemas se tornem cada vez maiores, até que se chegar a uma situação insustentável, disse ele uma vez sobre seu país.
Ele não tinha certamente soluções prontas: Não sou político, não posso resolver os problemas. Senna nunca teve ambições políticas, como tem, por exemplo, Pelé: Acho que lá eu não poderia dar e nem fazer aquilo que creio que deveria. Pelo menos nesta fase da minha vida não tenho visão e conhecimento suficientes para concretizar alguma coisa de bom. E acho que a gente só deve fazer alguma coisa quando sabe fazer bem. Se não, é melhor não fazer!
Além disso, ele não era muito amigo da política. Eu acompanho, como se deve, porque a política influi diretamente sobre a vida de todos. Mas não gosto. Não gosto da política porque acho que ela é, na maior parte dos casos, desonesta. Eu me considero uma pessoa honesta, por isso me dou mal com a desonestidade da política.
O que não ocorria era indiferença em relação aos problemas do Brasil: O que sei é que grande parte da população brasileira está ficando cada vez pior nos últimos anos. Essa é uma situação que muito me impressiona. Não basta trabalhar contra isso; é preciso dar pelo menos uma esperança ao povo…. isso me toca e me preocupa muito.
Ele atuava muito na área social, dando apoio a projetos como o das crianças de rua, mas não gostava de fazer alarde, receando que isso fosse explorado pela publicidade. Mas há algumas possibilidades de ajudar diversas pessoas de diferentes formas. Eu faço todo o possível.
Ele também via uma outra coisa a ser feita pelo Brasil: Acho que uma coisa que posso fazer pelo meu país é exibir a minha bandeira brasileira ao mundo todo, a cada vitória. É impressionante o número de pessoas no Brasil que acompanham as corridas. Elas têm muito entusiasmo pela Fórmula 1, e todos podem acompanhar pela televisão, os ricos e os pobres. Como há aparelhos de TV nas favelas, cada um pode ser um pouquinho campeão. As pessoas se identificam comigo, minhas lutas, meus sucessos, minhas vitórias, que também são vitórias deles.
E isso lhes dá alguma coisa…. No meio de todas as dificuldades, da violência no Brasil, a cada duas semanas essas pessoas têm essa distração e a possibilidade de fazer parte de outro mundo, o da felicidade. Acho importante para esse povo manter tal unidade, e sinto que tenho essa ligação com ele.
Além disso, Senna procurava transmitir seus valores e ideias, tais como dedicação, entrega, retidão, honestidade. Nas minhas entrevistas, e também na maneira de pilotar, procuro mostrar a essas pessoas os valores que considero bons e certos para serem transmitidos. Porque sei que, olhando para mim, estão observando o que eu faço…
Senna amava o seu país e o seus compatriotas. Quem teve a oportunidade de observá-lo dando autógrafos pacientemente em Interlagos, e se deixando fotografar de todas as maneiras, com os fãs, estranharia a imagem fria e arrogante que ele exibia na Europa……
E os brasileiros já o amavam e respeitavam há muito tempo. Quando ele ganhou pela primeira vez em Interlagos, em 1991, e seguiu a noite de helicóptero para a casa dos pais, na zona norte da cidade, já era aguardado por uma multidão de cinco a seis mil pessoas. Josef Leberer estava junto: Era uma disposição extraordinária, uma atmosfera de magia, uma fantástica vivência. Como o tempo passava e a multidão não se dispersava, ele tratou de fazer uma proposta: Eu volto a varanda com a taça, mas depois vocês vão embora! Funcionou.
Um dos segredos desse amor: Senna dava aos brasileiros, e não somente aos mais humildes, uma esperança, uma confiança. Para eles Senna era a prova de que mesmo num país corroído por crises, corrupção e injustiça, era possível se subir pelo próprio esforço. Era a nossa resposta ao mundo, que sempre viu no Brasil um país onde nada funcionava, onde nada se realizava. Os brasileiros dizem: Tudo o que ele conseguiu, nas pistas e no sucesso financeiro, só pode nos dar coragem.