Marca histórica em Jerez por pouco não foi adiada: Senna pensou em desistir dos treinos depois do acidente chocante com Martin Donnelly.
Foi uma comemoração discreta e entre amigos, bem ao gosto de Ayrton Senna. Um bolo com fatias distribuídas entre mecânicos e auxiliares no box da McLaren, na manhã do GP da Espanha de 1990, homenageou uma façanha histórica. Com a pole position conquistada na véspera, 29 de setembro, o brasileiro largaria pela 50a vez na primeira posição do grid, a oitava naquela temporada.
Nos festejos antes da corrida, Senna já estava com a cabeça no duelo com Alain Prost e na chance de ser bicampeão mundial. A pole de número 50 foi celebrada para valer no dia anterior, no retorno ao box após mais uma volta extraordinária. Quando teve um breve instante para pensar na dimensão de sua marca, Senna chorou. Enquanto enxugava as lágrimas, revelou que aquela pole se igualava a outro momento marcante nos treinos classificatórios: A primeira em Portugal, e essa aqui, em Jerez, foram as poles que mais me emocionaram em todos esses anos de Fórmula 1.
O ritmo frenético de um fim de semana de Grande Prêmio não permite muito tempo para reflexão, mas Senna parecia tentar processar o significado do feito.
Naquela vez em Estoril, na temporada 1985, acho que eu conquistei um grande desafio inicial na Fórmula 1. E hoje é uma consagração tremenda na minha trajetória. Ayrton também aproveitou o momento para agradecer aos mecânicos e companheiros não só da McLaren, mas também da Lotus, a escuderia pela qual ele obteve as primeiras poles da carreira.
Para se ter uma ideia do tamanho da marca alcançada em Jerez, o segundo maior detentor de poles em atividade naquela temporada, Nelson Piquet, tinha largado em primeiro em menos da metade das vezes que Senna: 24. O recordista antes de Ayrton era Jim Clark, com 33. Até aquele momento da carreira, Senna somava 50 poles em 108 GPs, um aproveitamento espantoso, de 46%. Ainda assim, ao falar sobre esses números em Jerez, Senna rejeitou o argumento de que conseguia tantas poles porque desafiava os limites do carro: Nem me arrisco tanto quanto os outros.
O SUSTO COM DONNELLY
Riscos e limites, por sinal, eram temas muito vivos na cabeça de Ayrton Senna na Espanha naquele ano. No primeiro dia de treinos, o irlandês Martin Donnelly bateu de frente no guard rail na curva Enzo Ferrari. Naquele trecho, os pilotos costumavam estar a uma velocidade de cerca de 250 km/h. A Lotus de Donnally se desfez em vários pedaços, em uma imagem chocante. Temeu-se pelo pior. Senna, por sinal, achou que o piloto não resistiria á batida. Cheguei a ser informado pelo rádio que ele havia morrido, revelou.
Apenas dois pilotos forma ao local onde o irlandês era atendido pelos médicos: Senna e Derek Warwick, colega de Donnelly na Lotus, que também quis acompanhar de perto o resgate. Só depois de visitar o hospital do circuito, onde soube que o colega não corria mais risco de morte, o brasileiro aceitou ser entrevistado sobre o episódio. Fui tentar saber por mim mesmo o que tinha acontecido com ele, acompanhar o socorro, explicou. Casos como esse demonstram o quanto somos frágeis, pois um pequeno erro ou uma falha mecânica pode nos abalar ou até tirar vidas, explicou, alarmado com a situação.
BATALHA INTERIOR
Com quatro fraturas e traumatismo craniano, Martin Donnelly foi transportado de helicóptero ao Hospital Universitário Virgen del Rocío, em Sevilha, a cerca de 90 km/h do circuito. Em Jerez, Senna continuou a buscar esclarecimentos sobre a colisão, conversando com dirigentes e socorristas. Assim as informações não ficam perdidas e alguma coisa pode ser usada no futuro. Errado seria ficar nos boxes, de braços cruzados, apenas esperando.
Além de defender a realização de mais testes de segurança pelas equipes da Fórmula 1, o brasileiro da McLaren confessou estar preocupado com a proteção aos pilotos nas colisões frontais como as de Donnally. Mesmo com o crash test, quando todos os carros são submetidos a impactos frontais para se verificar sua resistência, poucos aguentam uma batida forte de frente. A segurança na Fórmula 1 deve ser melhorada, sentenciou.
Ayrton revelou ainda que a pole position de número 50 quase não aconteceu. Depois do acidente, cheguei a pensar seriamente em não voltar á pista para o final do treino. Mesmo ás portas do bicampeonato, Senna admitia o peso de enfrentar os riscos inerentes á profissão a cada fim de semana. É uma batalha interior, uma verdadeira guerra psicológica.