Duas cenas, uma levando a outra: a primeira é íntima e capta o modo como as coisas costumavam ser; a segunda revela a com grande precisão o que Ayrton Senna havia se tornado.
Em 1994, a fábrica da Williams não era um templo de tecnologia com fachada de vidros brilhantes, mas uma fábrica comum e puramente funcional em Didcot, no subúrbio de Londres, onde eram fabricados os carros de corrida. Atrás, ficava um pequeno museu; acima, uma sala de conferências, grande o bastante para acomodar duas ou três dúzias de pessoas.
Ali, antes de Senna pilotar um carro da Williams, um grupo de jornalistas de automobilismo foi convidado para uma entrevista coletiva. Ayrton estava em uma linha aberta em São Paulo, onde, simultaneamente, jornalistas brasileiros também o entrevistavam. Frank Williams, na sala de conferências, em sua cadeira de rodas, e Senna trocavam brincadeiras. Era perceptível a grande afeição entre os dois, algo muito mais profundo do que o fato de, onze anos antes, Williams ter sido o primeiro a deixá-lo pilotar um carro de F1 e, na época, ter afirmado que esperava que Senna não se esquecesse daquilo.
Também era possível perceber outra coisa: Senna estava muito tranquilo. Aquilo poderia ser, em parte, por que ele teria o carro que todos queriam ter e, também, porque estava com trinta e quatro anos, mas, principalmente, porque tinha provado suas grandes verdades como piloto. O que quer que ele ganhasse com a Williams seria um acréscimo bem-vindo, mas não essencial a sua carreira.
A certa altura, um jornalista fez uma pergunta provocativa ( sobre Prost ), a qual Senna respondeu com ironia: não consigo ouvi-lo! Frank, eles cortaram a linha! Todos caíram na gargalhada, tanto em Didcot quanto em São Paulo.
Como os carros da Williams eram muito bons – Mansell sagrou-se campeão em 1992 com uma vantagem esmagadora, e Prost fez o mesmo em 1993 -; durante a entrevista coletiva, houve uma conversa séria sobre a possibilidade de Senna vencer todas as dezesseis corridas da temporada. Ele foi dúbio com relação a isso, como teria de ser, mas também não desmentiu a possibilidade.
Ainda é difícil com essa ironia.
A segunda cena, em Estoril, onde Senna se preparava para entrar no carro modelo 1994, era bem diferente em escala e apresentação. Ele voou para lá no próprio jato – um reflexo de como os modernos pilotos de F1 são bem sucedidos, ganhando muito mais do que chefes de Estado.
O lançamento atraiu tantas equipes de filmagens, jornalistas e fotógrafos que se tornou um evento em escala mundial. Havia tanta gente na entrevista coletiva que a maior sala do prédio do circuito mal acomodava as pessoas e, quando Senna saiu e posou com o carro, tantos fotógrafos se reuniram ao seu redor que um jornalista tirou uma foto deles mesmos.
Então, Ayrton e seu novo companheiro de equipe, Damon Hill, fizeram o que se pode chamar de volta de exibição para os fotógrafos, que se deleitaram.
Aquele exército da imprensa foi convidado para jantar em um luxuoso hotel em Cascais, a cidade litorânea próxima do circuito. Senna entrou na sala vestido, como normalmente fazia, com um traje casual e, ao mesmo tempo, elegante: naquele caso, um paletó esporte. Quando entrou, toda a sala ficou em silêncio como se uma presença imponente tivesse aparecido.
De certa forma, tinha.
A ironia das semanas subsequentes também continua sendo difícil de suportar. Senna conseguiu a pole no Brasil, mas girou e saiu da corrida….. Conquistou a pole no circuito de Aida, no Japão, mas bateu logo depois da largada e saiu do Grande Prêmio do Pacífico… Conquistou a pole em Ímola…..
Há muitas imagens depois disso que não são esquecidas, que jamais serão esquecidas. O professor Sid Watkins – médico residente da F1 e velho amigo de Senna – foi uma das primeiras pessoas a chegar até ele depois da batida. O médico encontrou Senna com uma aparência serena. Quando tiraram do cockpit, ele suspirou. Watkins disse: senti sua alma partindo naquele momento.
Por que o Williams foi direto ao muro, na curva chamada Tamburello, na sétima volta do Grande Prêmio de San Marino, em primeiro de maio de 1994? Apesar das investigações dos jornalistas, apesar das declarações, dos exames e da evidência, nada ficou esclarecido nos tribunais, como deveria ser.