O tabu de Senna no Brasil terminou com uma incrível demonstração de talento e garra – e Interlagos coroou o campeão uma festa histórica.
Bicampeão mundial de Fórmula 1. Recordista absoluto de pole positions. O mais rápido na chuva. O rei do circuito mais tradicional da categoria, em Mônaco. No início dos anos 1990, a lista de títulos e façanhas de Ayrton Senna crescia a cada fim de semana. Para o ídolo brasileiro, no entanto, sua carreira jamais estaria completa sem uma das poucas conquistas que ainda faltavam no seu currículo. O troféu do Grande Prêmio do Brasil valia quase o mesmo que um mundial, tamanho era o desejo de Senna de vencer no seu quintal, o Autódromo de Interlagos. A temporada de 1991 oferecia uma chance de ouro para a quebra da escrita, com a McLaren, que voara baixo na estreia em Phoenix, parecendo estar bem á frente das demais equipes.
É tudo o que eu quero, resumiu Ayrton em seu primeiro compromisso na semana da corrida – a renovação do contrato de patrocínio com o Banco Nacional, no Rio, ao comentar a possibilidade de vencer em São Paulo. O campeão tinha aproveitado alguns dias de folga em Angra dos Reis e parecia relaxado e confiante. Já estive bem perto da vitória em várias ocasiões e vou continuar tentando, disse, em tom otimista.
O fato de viver um bom momento tanto na carreira como na vida pessoal tornava tudo mais fácil. De um ano para cá, tudo mudou para melhor, dentro e fora das pistas, comemorou.
O PERIGO ERA OUTRO
Quem também chegou a Interlagos calmo e sorridente foi o Monsieur Brésil: seis vezes vencedor da etapa brasileira da Fórmula 1, Alain Prost bem que tentou tirar o rival da zona de conforto, aproveitando seu fantástico retrospecto. Não sinto qualquer prazer especial em ganhar no Brasil. Pode ser diferente para o Senna, porque ele nunca venceu aqui e deve estar ansioso por isso. Mas eu não, pois já venci na minha casa e sei como é a sensação. Apesar das escaramuças com o ex-colega de McLaren, o francês não passava qualquer aperto em meio aos brasileiros – tanto que desembarcou sozinho em Cumbica, distribuiu adesivos da Ferrari e pegou táxi comum rumo ao Hotel Transamérica.
Prost, contudo, não chegaria a incomodar Senna naquele fim de semana. A verdadeira ameaça á sua primeira vitória no Brasil estava em outro box: eram as Williams de Nigel Mansell e Ricardo Patrese, que surpreenderam na classificação para o grid. Na sessão decisiva de classificação, o italiano marcou 1m16s775. Só não ficou com o melhor tempo porque Senna pediu uma nova regulagem aerodinâmica no carro e tirou uma volta extraordinária da cartola: 1m16s392, garantindo a pole.
Tinha que dar um pouco mais de mim, chegar ao limite, explicou Ayrton, que largaria na frente pela segunda vez consecutiva em Interlagos. Puxar a fila seria ainda mais saboroso graças á euforia do público brasileiro. É muito bom ver essa torcida delirando, é incrível, vibrou Senna. Mas para quem esperava um novo passeio como o de Phoenix, ele avisava: Honestamente, não será nada fácil. E não foi mesmo.
SETE VOLTAS DRAMÁTICAS
A 20a edição do GP do Brasil, em 24 de março de 1991, entrou para a história do automobilismo. Talvez não tenha sido a melhor exibição da carreira de Ayrton Senna, mas é certamente uma das páginas mais emblemáticas de sua trajetória.
Durante 50 voltas, o script foi o esperado: depois de largar na frente, o brasileiro manteve a ponta resistindo ao cerco das Williams – primeiro Mansell, que acabou rodando, e depois Patrese. Só que as 20 voltas do fim, Senna perdeu a quarta marcha, o que exigia um incrível esforço a cada passagem no câmbio. Estava um horror, mas ficou ainda pior, revelou Senna depois da prova. Faltando sete voltas, perdi a segunda marcha, a terceira, a quinta, tudo. A única que entrou foi a sexta. Aí, foi dramático.
Com Patrese reduzindo a diferença a cada volta, Senna chegou a pensar que o tabu sem vitórias no Brasil continuaria. Aí eu pensei comigo: pô, eu lutei tanto, tantos anos para chegar a isso, e hoje, lutei tanto, vai ter que dar e vai ter de chegar em primeiro porque Ele é melhor do que todos e Ele vai me dar essa corrida depois de tudo. E foi isso mesmo, Deus me deu essa corrida e valeu. Eu estou feliz demais, a emoção foi muito grande!
Apesar da extrema dificuldade para manter a McLaren, principalmente nas curvas de baixa velocidade, Ayrton manteve o carro na pista a duras e foi se adaptando ás limitações mecânicas, segurando a potência do motor Honda na raça e no braço.
No momento em que Senna completou a 71a volta, recebendo a bandeirada do diretor da prova, o húngaro Mihaly Hidasi, Interlagos foi palco da maior comemoração já vista na Fórmula 1. As arquibancadas balançaram. E Ayrton desabafou em lágrimas – de felicidade, alívio e dor, tudo ao mesmo tempo, com seu pranto captado pelo microfone instalado no capacete e exibido ao vivo para o mundo inteiro na transmissão da TV: Meu Deus, não acredito!.